Foi realizado na tarde de ontem um rápido encontro de uma representante da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde com um pequeno grupo de pais cujas famílias são atendidas (ou deveriam ser atendidadas) pelas unidades de saúde pertencentes à Regional Norte da Prefeitura de Belo Horizonte. O objetivo do encontro era o de ouvir as demandas desses pais que, em audiência pública na Câmara Municipal de Belo Horizonte no último dia 4 (onde ela também esteve presente), manifestaram profunda insatisfação com o atendimento público de saúde que seus filhos autistas recebiam. A funcionária atende pelo nome de Juliana Daher. Não sei qual a função específica dela na Coordenadoria de Saúde Mental, mas para nossos propósitos esse tipo de informação é absolutamente irrelevante, por isso não farei o menor esforço para descobrir. Juliana Daher é apenas mais uma figura estóica da PBH que eventualmente se dispõe a ouvir demandas que para todos os efeitos práticos não existem. Não é que não reconheçam problemas, mas para a PBH esses são invariavelmente pontuais e podem ser resolvidos individualmente, por meio de pequenas correções de coordenação. Nesse contexto, demandas reais de que os serviços formais oferecidos são insuficientes não existem na prática, e esses poucos fantasmas que reclamam exageram na intensidade ou são utópicos e irrealistas demais para serem levados a sério. Ainda assim, guardemos o nome dela: Juliana Daher. Para todos os efeitos, essa foi a cara da PBH ontem, e será conveniente, ao menos nos limites deste texto, substituir “Prefeitura de Belo Horizonte”, tão impessoal e abstrato, por Juliana Daher, a figura estóica e genuinamente interessada em ajudar, mesmo quem de fato não precisa de ajuda ou nunca poderá receber o tipo de ajuda que diz desejar.
As demandas das 3 famílias que foram ouvidas ontem (está aí o número representativo de pessoas que Juliana Daher convidou a participar – está aí o número de amostras que a prefeitura, ops, que Juliana Daher, parece achar suficiente para diagnosticar uma situação e tomar decisões) foram coletadas separadamente, em contatos de 20 a 40 minutos cada. É como se as reclamações de pais cujos filhos autistas são atendidos dentro de uma mesma regional, ou, mais precisamente, por uma mesma equipe multidisciplinar que trabalha dentro de um mesmo centro de saúde, pudessem ser tão diferentes. Seria também um temor de que 3 pessoas em conjunto poderiam cobrir mais rapida e eficientemente seus argumentos frágeis? Curiosamente, eu não pude participar desse encontro. A Prefeitur... Juliana Daher, claro, assim como todo o serviço público municipal, deve se espantar com a existência dessas pessoas que usam o horário comercial (ou qualquer horário que seja) de forma produtiva, ao invés de permanecerem indefinidamente em filas de atendimento em Centros de Saúde ou de atenderem a “chamada ao diálogo” com representantes da prefeitura, ao “fala, que eu te escuto” oficial, que facilmente antecipamos como infrutíferos. Desse modo, minha esposa foi incumbida da infeliz tarefa de deixar os filhos em casa aos cuidados da avó paterna, e falar a e, pior, ouvir Juliana Daher. Portanto, o que escrevo tem por base as impressões emitidas por minha esposa, mas eu facilmente me imaginei não tendo ultrapassado os primeiros 5 minutos de conversa, dada a configuração tão clara de inutilidade com que parece ter sido levada desde o início.
Nossas demandas foram apresentadas formalmente, assim como as dos outros 2 pais. Ou melhor, nem eram nossas demandas pessoais específicas, mas propostas de ação, de (às vezes) pequenas medidas com potencial de mudar o status geral da atenção ao autismo na cidade. Não acreditamos no poder de soluções individualizadas nesse caso. O que poderiamos conseguir? Subir de uma para duas sessões semanais de terapia apenas para essas 3 famílias? A qual custo? O silêncio? Por quanto tempo? Até a próxima transição de poder na prefeitura? Ou mesmo antes disso, em um ajuste orçamentário? Acho que também já ficou claro que não acreditamos e não respeitamos a privacidade de informações de utilidade pública. Não admitimos a hipótese de não expor ou moderar nossas opiniões em nome de um receio abstrato de que o poder público poderia retaliar, negando atendimento, reduzindo ainda mais sua qualidade ou desistindo de benefícios individuais que pensava oferecer. Não, continuaremos a emitir nossas opiniões, com todas as palavras fortes que porventura se façam necessárias, e continuaremos a receber o atendimento que já recebíamos e a exigir aquele que nos é de direito, independente dos meios a que porventura precisemos recorrer. Nós temos esses meios à disposição e sabemos como recorrer a eles.
Voltando ao contato inútil, a princípio, Juliana Daher foi radiantemente simpática e começou a conversa deixando clara a informação absolutamente irrelevante sobre o nível com que ela amava o que fazia. Já uma maneira esquisita de começar uma conversa com um desconhecido que não está nem um pouco interessado em uma relação de amizade ou tem obrigação a ter qualquer nível de simpatia por você, porque foi ali para cobrar alguma coisa. A princípio, uma terapeuta ocupacional, Juliana Daher já trabalhou em uma reconhecidamente competente clínica (particular) de reabilitação na cidade (onde minha filha também já foi atendida), com experiência no atendimento a autistas, e agora “milita” na prefeitura, onde coordena ou ajuda a coordenar uma rede de profissionais de saúde mental que precisam atender uma grande variedade de demandas. Eventualmente, também faz parte dessa “militância” junto à prefeitura reservar tempo para ouvir, aos sorrisos, as poucas vozes reclamantes e fornecer justificativas fúteis e potencialmente anestesiantes. Agora me pergunto a exatamente o que ela se referia quando disse que amava o que fazia, se aos atendimentos como terapeuta ocupacional, ou se a atual “militância”. Provavelmente à segunda, o que, infelizmente, mina boa parte do bom profissionalismo que ela possivelmente exibia durante seu período produtivo. Não sei porque uso aspas em militância, porque o tipo de atuação a que esse tipo de funcionário público é preciso recorrer tem diferenças muito pequenas à uma militância político-ideológica tradicional.
Funcionários da Prefeitura de Belo Horizonte parecem ter uma capacidade bastante peculiar de combinar (singular e competentemente) simpatia e suposta disposição a ouvir a sociedade, com uma espécie particular de cinismo que pretende tornar naturais todos os problemas apresentados, na tentativa de dar a todos eles quase um status de "fatalidades da natureza humana", que só podemos corrigir na margem, não havendo a menor possibilidade de uma mudança estrutural. Assim, "psicólogos da linha comportamental podem ser quase tão inúteis aos autistas quanto os da linha analítica". O que pode ser facilmente interpretado como o seguinte: na prática, o problema é que a maior parte dos psicólogos que fazem parte da rede municipal é ruim demais para ser útil a qualquer autista, independente da sua linha de ação.
Juliana Daher alertou que a PBH não pode (ou não quer?) exigir linhas de atuação específicas ou experiências especificas nos editais de contratação de profissionais para a rede de saúde mental. Disse que o profissional, seja qual for sua formação e experiência, é obrigado a lidar da melhor forma que encontrar com qualquer tipo de demanda que aparecer. Ela não mencionou sequer algum tipo de apoio técnico que pudesse ser dado, como palestras com especialistas, disponibilização de material técnico para estudo, ou cursos de introdução à técnicas específicas de terapia para autistas. É curioso, porque sabemos de casos de psicólogos comportamentais que oferecem gratuitamente na cidade cursos introdutórios em ABA para pais de crianças autistas. Também não houve qualquer menção à qualidade dos profissionais que fazem parte dessas equipes multidisciplinares, independente de suas formações e experiências. Não é difícil imaginar o tipo de profissional que pode se sentir suficientemente atraído por esse tipo de proposta e condições de trabalho, pessoas que, no dia a dia, ainda são obrigadas a ouvir seus gerentes regionais de saúde e, com sorte, alguma Juliana Daher que ao menos possa apresentar um sorriso junto às cobranças.